por Elenilto Saldanha Damasceno
Em artigo anterior, abordei a atuação e a produção do escritor fluminense Joaquim Maria Machado de Assis como crítico literário, em sua dupla missão de projetar e de construir, paralelamente, uma Literatura e uma historiografia literária nacional. Especificamente, foram comentados seus estudos O ideal do crítico, Notícias da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade e A nova geração. Este artigo propõe, em contraponto, uma abordagem sobre a obra machadiana e sua classificação pela historiografia crítica literária.
Machado de Assis viveu no período de transição do Romantismo para o Realismo e o Naturalismo. Enquanto crítico literário, apresentou objeções ao Realismo e ao futuro da Literatura e opôs-se às excessivas minúcias descritivas e à construção das personagens nas narrativas realistas, cujas ações eram determinadas por circunstâncias exteriores, e não por sua constituição psicológica. Compreende-se, portanto, que sua crítica se estendeu ao Naturalismo, considerado uma vertente do Realismo na qual se acresceu pressupostos deterministas sobre a influência absoluta do meio na configuração das ações e caracteres das personagens. Machado descartou a estética ou "moda" realista, por julgá-la frágil para a construção de narrativas literárias.
Contudo, a crítica historiográfica classificou como realistas as obras de sua melhor fase de produção narrativa literária. Essa classificação representou apenas uma simplificação, baseada na mera associação entre o período cronológico de transição entre duas escolas literárias e a fase de transformação e aprimoramento da prosa machadiana. Essa simplificação é uma tendência recorrente, pois cada momento posterior condiciona a leitura da História e do passado de acordo com seus preceitos, ou seja, cada momento presente analisa e explica o passado com os pressupostos de sua atualidade, em detrimento do reconhecimento de que cada horizonte histórico tem ou teve seus próprios conceitos.
Hoje, considera-se que a verossimilhança de uma personagem depende, principalmente, da revelação de seus conflitos internos, os quais a fazem se mover e dão sentido à sua existência. O aspecto mais importante do Realismo foi o desvelamento da realidade, não o desvelamento da psicologia humana, e os textos de Machado de Assis apresentaram um aprofundamento psicológico das personagens que não foi característico no Realismo.
De fato, as classificações historiográficas a respeito da obra de Machado de Assis tornam-se questionáveis já em relação ao final de sua produção considerada romântica. Sua última obra dessa fase, Iaiá Garcia, apresentou uma trama complexa, na qual a troca de favores ou o clientelismo foi o tema central, e não o amor. A narrativa revelou as facetas do favorecimento e do clientelismo numa sociedade cujas divisões, origens e relações não eram nítidas, mas obscuras. No texto, Machado denunciou, com sua peculiar sutileza, a importância do capital, do jogo de influências e do emprego de favorecimentos e barganhas como ferramentas para a ascensão social. Nessa obra, considerada romântica, Machado de Assis aproximou-se bem mais da estética realista. No desfecho da história, a reflexão da personagem Iaiá Garcia, de que "a vida é desilusão", reafirmou um pensamento de valor realista.
Memórias póstumas de Brás Cubas foi considerada, pela historiografia literária, a primeira grande obra do Realismo brasileiro. A narrativa apresentou, como narrador-personagem protagonista, um defunto a narrar a sua história de vida. Logicamente, essa construção de narrador não se coadunou com os pressupostos do Realismo, assim como o uso da prosopopeia nas representações de uma palmeira e de um cachorro que falavam. Portanto, Memórias póstumas de Brás Cubas foi realista na denúncia de comportamentos morais hipócritas da classe burguesa de sua época, mas nitidamente não se igualou ao aspecto realista das obras de um Eça de Queirós.
O alienista consistiu em uma alegoria sobre o pensamento do final do século XIX, fundamentado nas teorias racionalistas e cientificistas, no Positivismo filosófico e no Realismo e Naturalismo literários. A personagem protagonista do conto, o médico Simão Bacamarte, abriu um hospício, com o objetivo de aplicar suas teorias e desenvolver seus estudos científicos. Sua tese considerava que qualquer desequilíbrio das faculdades mentais atestava a condição de loucura. Seu critério e seu método consistiam na observação e no isolamento do paciente considerado desequilibrado. Nessa narrativa, Machado de Assis apresentou uma paródia alegórica sobre as verdades científicas, as quais, aplicadas arbitrariamente pela personagem protagonista, revelavam a sua insanidade.
Em Dom Casmurro, as intrincadas e suspeitas relações entre o protagonista Bentinho, Capitu (sua esposa) e Escobar (seu melhor amigo) e os questionamentos e dúvidas sobre a paternidade de Ezequiel como incógnita desse complicado triângulo amoroso de profunda intensidade psicológica não poderiam, também, ser consideradas construções narrativas próprias do Realismo. Diferentemente da pretensa neutralidade dos narradores realistas, Dom Casmurro é uma narrativa repleta de lacunas e incertezas, baseada no discurso altamente suspeito de um narrador-protagonista o qual apresenta seus pontos de vista sem quaisquer refutações ou opiniões divergentes.
Não coincidentemente, foi após a publicação de seus estudos críticos literários, os quais, de certa forma, representaram seu modelo de teoria literária, que Machado de Assis produziu algumas de suas principais obras. O escritor foi mestre na construção de narrativas psicológicas profundas, sutis e irônicas. Investiu na subjetividade das personagens, não em uma perspectiva realista, mas na direção de ideias que culminariam posteriormente, por meio do pensamento de Sigmund Freud. Se, na Viena culta de 1900, as ideias de Freud causaram tremendas polêmicas, também a incipiente Literatura brasileira do final do século XIX abordou os abismos entre a consciência humana e seus conflitos psicológicos e, assim, rompeu paradigmas e critérios de classificação. Quem fez isso, de forma peculiar e genial, foi Machado de Assis. Sua obra situou-se além e acima dos "ismos" de sua época, embora ainda hoje seja enquadrada como vinculada ao Realismo na modalização fechada apresentada pela historiografia literária brasileira. De certa forma, por estar à frente da realidade de seu tempo, a obra de Machado de Assis extrapolava esses critérios de análise e de classificação. Machado pertenceu a outra ordem e, talvez, suas grandes obras se "ajustem" mais coerentemente na classificação de clássicos inclassificáveis.
Elenilto Saldanha Damasceno, gaúcho de São Leopoldo, é escritor, professor, jornalista, revisor e editor. É mestre em Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e é graduado em Letras e em Jornalismo (pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos).
Atualmente, é professor de Língua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, colabora como colunista (crítico literário) nos sites Artistas Gaúchos e Escrita Criativa e atua como editor na revista Expressão Digital.
Gostaria de divulgar seu trabalho nesta página? Cadastre-se na Plataforma clicando aqui.