Crônicas de Ana Fonseca
Escrever à noite, cansada, é libertador. Sim, isso mesmo. Ao menos no meu caso, no sentido forte do que pode significar a libertação de palavras! É à noite, com os olhos semicerrados, quando não estou mais no domínio da minha racionalidade, que a primeira versão de um texto, em geral, flui. Sempre? Não! Em geral. Eu também já iniciei a escrita pela manhã, à tarde, mas nada se compara à fluidez de quando a casa está em silêncio e o corpo exausto.
Não controlar as próprias ideias, deixar as palavras saírem pela ponta dos dedos, não pensar sobre o que já pensei tanto, não estar mais em condições de decidir – palavra a palavra – o que deve estar no texto que escrevo é formidável. Por isso a preferência por começar a escrita cansada. Às vezes, bem cansada! Quer saber que horas são agora, por exemplo? 23:23, de um domingo. Passei a semana toda pensando em escrever esta crônica. Mas não consegui começá-la antes. Na noite passada, dormi pouco e mal. Um cochilo ao longo do dia teria sido providencial, se eu tivesse tido tempo. Mas não tive. Nem consegui dormir mais cedo. Então, pensei: já que estou bem cansada, vou começar a escrever. E, voilá!
Talvez você já tenha ouvido falar que a arte é noventa porcento transpiração e dez porcento inspiração. A proporção varia conforme o enunciador da máxima. Sua autoria é atribuída a várias pessoas, e tantas outras já a usaram, de fato. Contudo, não sabemos, efetivamente, quem é a autora ou o autor da famosa sentença. Interessa-me, com efeito, o que ela significa: inspiração é importante para o processo de criação artístico? Sim! De qual arte? De todas! No caso da literatura, sem o árduo trabalho de reescrita, não se chega a um bom resultado. Por isso, o ditado diz que há outros noventa porcento de transpiração. Escrita é inspiração. Reescrita é transpiração.
Talvez você já esteja pensando que alguém alguma vez escreveu algo incrível de um só fôlego... Conhece quem já disse algo parecido? Conheço também! Inclusive, eu mesma. O texto verbal de um dos meus livros infantis foi escrito em quarenta minutos. De supetão! Depois, passei quase dois anos lendo e relendo a história para ter certeza de que nada precisaria ser modificado. E, só então, foi ilustrado e publicado. Por quê? Eu precisava ter certeza de que apresentaria a história em sua melhor versão. A que horas escrevi a primeira versão? Era quase meia-noite. Todas as revisões foram feitas pela manhã. E se você está se perguntado se deu certo, respondo que deu tão certo que meu livro foi até finalista de um prêmio literário muito bacana!
Se você já sabe quando prefere começar a escrever, ótimo, pois você já conhece seu processo. Se não conhece, experimente começar no momento do dia em que seu lado racional age minimamente como fiscal de suas ideias. A que horas palavras fluem pelas pontas dos seus dedos? Este é o momento da inspiração. Depois, deixe o texto dormir, para, então começar o processo de releitura e reescrita, ou seja, transpire. Quanto não houver mais o que alterar, aí, sim, publique-o.
E, agora, peço licença para dormir que já estou bocejando e mal consigo olhar para a tela do computador. Amanhã cedo, reviso a crônica, o que demorará mais tempo do que para a escrita de sua primeira versão. E, se autoaprovação racional permitir, logo depois, o texto será enviado para publicação. Boa noite!
Escritora, doutora em Filosofia (UFRGS), professora na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e mãe do Arthur. Nasceu em Porto Alegre, na primavera de 1974. Já escreveu, editou e organizou mais de cem livros, alguns dos quais foram finalistas e receberam importantes prêmios literários. Como autora, os textos já receberam, dentre outros, o Selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (FNLIJ), o Prêmio Nelly Novaes Coelho (UBE/USP), o Troféu Carlos Urbim da Academia Rio-grandense de Letras, o Selo Destaque da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ). Dirigiu a Editora da UFCSPA por seis anos. É membro da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul (ALFRS), da Associação Gaúcha de Escritores (AGES) e da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ). O nascimento do filho fez olhar a literatura para infâncias com outros olhos. O desejo de contar as próprias histórias para ele contribuiu para forjar a escritora. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.
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