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Um maravilhoso criador e contador de histórias

Um maravilhoso criador e contador de histórias

Dicas de Escrita de Elenilto Saldanha Damasceno

Um maravilhoso criador e contador de histórias

Apreciadoras e apreciadores de Literatura, provavelmente, ficarão mais interessados em um texto que apresente Jesus como um maravilhoso criador e contador de histórias do que como o "Cordeiro que tira o pecado do mundo". Por isso, essa é a proposta deste artigo, preparado para ser publicado neste período do ano denominado Páscoa cristã.

Sim, Jesus era um grande criador de histórias e contava suas parábolas em meio aos seus discípulos e seguidores, reunidos em grupos pequenos ou, às vezes, numerosos. Esses grupos, normalmente, eram formados por pessoas das classes sociais menos favorecidas e, portanto, Jesus procurava utilizar, em suas parábolas, uma linguagem simples, formas de raciocínio que se aproximassem do pensamento popular e contextos diegéticos diretamente relacionados ao cotidiano do povo daquela época.

O pensamento popular não se guia pela pretensão de atingir um conhecimento absoluto lógico e científico, mas orienta-se, principalmente, pelas experiências de vida, por intermédio de comparações, paralelos, analogias. Assim, as parábolas não apresentam explicações exatas, mas ativam a imaginação, os subentendidos, a dúvida e as emoções. Ademais, as parábolas de Jesus não eram contadas para serem apenas contempladas, admiradas ou para entretenimento. Sua finalidade ilocutória era e é produzir reflexão que se transforme em ação. Mais do que instrução moral, as parábolas apontam para uma mudança de ponto de vista, de um plano físico ou material para um plano metafísico ou "espiritual" que, no contexto bíblico, é o Reino de Deus. Por isso, muitas das parábolas de Jesus giram em torno da ideia desse Reino de Deus.

As parábolas que Jesus criava e contava eram a forma mais prática que ele podia usar para facilitar a comunicação e o entendimento de suas ideias pelo povo que o seguia. Esse povo era uma gente simples, que não se ocupava com grandes elucubrações ou proposições teóricas abstratas. Assim, a melhor maneira de Cristo concretizar seu objetivo era apresentar narrativas com ilustrações, metáforas, comparações, alegorias relacionadas a situações cotidianas. Não convinha pregar filosoficamente ou teologicamente, mas sim literariamente.

Para exemplificar o quanto essas histórias criadas e contadas por Cristo apresentam elementos de literariedade, convido à leitura e à análise sobre uma das mais conhecidas dessas narrativas: a parábola do bom samaritano.

E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês?

E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.

E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso, e viverás.

Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?

E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e, espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto.

E ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo.

E d'igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e vendo-o, passou de largo.

Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele, e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão;

E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele;

E, partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar.

Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?

E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira (Lucas 10:25-37).

 

A parábola do bom samaritano aparece apenas no Evangelho segundo Lucas. No plano da narração, atribui-se a autoria do relato do evangelho a Lucas, mas atribui-se a autoria da parábola a Jesus.

Percebe-se que a parábola do bom samaritano corresponde às características estruturais e aos elementos constitutivos típicos do gênero textual literário "parábola". Logo, além de texto teológico e religioso, é um texto literário.

No plano descritivo, alguns elementos se relacionam ao plano inferior da natureza, pelas representações do mundo do trabalho agrário (azeite, vinho, cavalgadura) e também do urbano (cidades, caminho, estalagem). Há relação metafórica entre azeite e bênção (ou unção), vinho e sangue, caminho e vida, viagem e vida, feridas e sofrimento, estalagem e repouso (ou proteção).

Como retórica, a parábola estabelece analogias: o caminho e a viagem são a vida humana, as feridas são o sofrimento humano que leva à morte, o azeite é a unção ou o Espírito Santo que alivia a dor e cicatriza as feridas, o vinho é o sangue de Jesus e a redenção e cura pelo sacrifício de Cristo, a estalagem é o acolhimento e a proteção de Deus.

No caminho de suas vidas, os seres humanos encontram-se e convivem. Mesmo diante do sofrimento, relacionam-se de forma superficial e distanciada. O sacerdote e o levita, que deveriam ser exemplos de caridade, desprezam o moribundo à beira do caminho, enquanto o samaritano, figura do desprezado, assiste o necessitado. As feridas causadas pelo mundo (os salteadores que despojam, espancam e matam) são tratadas e curadas com azeite (a ação do Espírito Santo) e vinho (o sangue e a morte redentora de Jesus Cristo). Na estalagem, o enfermo em recuperação (o cristão redimido) aguarda a volta do bom samaritano (Jesus), que pagará (expiará) pela cura (salvação).

Contudo, a compreensão dessa parábola não depende apenas de aspectos metafóricos ou figurados. O sentido da narrativa depende, também, de conhecimentos prévios sobre alguns aspectos históricos e sociológicos. Para uma compreensão mais ampla da parábola, considera-se a necessidade de saber que os samaritanos constituíam um grupo populacional híbrido que se estabeleceu em uma determinada região da Palestina e que os israelitas se recusaram a admiti-los como membros de seu povo. Os samaritanos eram considerados um povo inferior e de má índole, ao passo que as figuras religiosas do sacerdote e do levita representavam os modelos de sabedoria e de caridade da cultura judaica da época. Assim, o que Jesus propõe na parábola é uma total reversão de conceitos e a abolição de preconceitos a respeito de valores sociais vigentes na época em que viveu. Essa parábola, contextualizada em nível sociológico, também é uma peça de retórica de teor revolucionário.

A parábola do bom samaritano, no contexto do evangelho, foi narrada para um doutor da lei. Logo, fica também explícita uma intencionalidade discursiva de Jesus de contrapor argumentos a argumentos. É interessante notar que, questionado a respeito da lei, o doutor da lei não se refere aos mandamentos mosaicos e judaicos, mas aos dois mandamentos declarados por Jesus como a síntese da lei e dos profetas: os mandamentos do amor (a Deus e ao próximo).

Outro aspecto interessante é que o doutor da lei, estribado em sua autoridade e conhecimento e com a intenção de justificar-se, pergunta a Cristo "E quem é o meu próximo?". Por associação, quem deve ser amado? Jesus responde-lhe com outra pergunta: "Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?". Jesus revela que o próximo não é o objeto do amor, mas é o sujeito do amor. O próximo é aquele que se aproxima. O argumento de Jesus prevalece na resposta do seu interlocutor: "O que usou de misericórdia para com ele". Nesse ponto, a leitura é que o próximo é aquele que se aproxima de qualquer pessoa com amor. Portanto, para amar o próximo, são necessárias (e bastam) humildade e verdadeira gratidão. Talvez aqui esteja a revelação (ou revolução) proposta nessa instigante parábola por Jesus, um maravilhoso contador de histórias.

No início deste artigo, mencionei que ele foi preparado para ser publicado neste período do ano. A Páscoa cristã confirma que Jesus é o bom samaritano. É Aquele que, movido de íntima compaixão, usou de misericórdia e, com seu amor incondicional, pagou o mais alto preço para estabelecer conosco uma nova aliança: a aliança da Graça. Vivemos mais um período de Páscoa, e ressoa, ainda, aquela pergunta do doutor da lei.

E quem é o meu próximo? E quem é o teu próximo?

Muito obrigado pela sua atenção! Em fraternidade, desejo que a Graça e a Paz sejam contigo também!

Elenilto Saldanha Damasceno

Elenilto Saldanha Damasceno, gaúcho de São Leopoldo, é escritor, professor, jornalista, revisor e editor. É mestre em Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e é graduado em Letras e em Jornalismo (pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos).

Atualmente, é professor de Língua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, colabora como colunista (crítico literário) nos sites Artistas Gaúchos e Escrita Criativa e atua como editor na revista Expressão Digital.

 

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